terça-feira, 24 de abril de 2007

A Hora da Estrela













Um dos paineis da mostra “Clarice Lispector - A Hora da Estrela"
no Museu da Língua Portuguesa. São Paulo.


“ Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu sou apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito.
... Esta é a minha simplicidade.”

“ O Ovo e a galinha” in: Felicidade Clandestina, 1ª edição, 1971. Editora Sabiá.

Aires da Mata Machado Filho
Em louvor de Mestre Aires

O Aires dos ares bons
Aires da mata
da linguagem
e do machado que não mata
mas desbasta e aparelha
a fina palavra
diamantina

palavra certa
que uma enlaçada e outra vai
formando
festa floral
floresta
de bem escrever
‎(ou bem pensar)‎
Aires faiscador
das últimas pedras musicais do Tijuco
Aires dicionário
sem empáfia, sem ares, mineiro
mineiro ladino
que soubeste ver no Tiradentes
o único herói possível
- herói humano -
e na fala do povo
no mistério dos ritos
no arco-íris das serras
captaste o ar, a alma de Minas
ó Aires
da verde mata
do machado de prata portuguesa
legítima
onde se oculta um brilhante
com todos os fogos tranquilos
na sabedoria
mestre Aires, recebe meus saudares.

( Carlos Drummond de Andrade,
publicado no Estado de Minas de 24 de fevereiro de 1989 )

O filólogo, filósofo, professor de Filologia Românica da Universidade Federal e da Universidade Católica de Minas Gerais, historiador, jornalista, presidente, durante muito tempo, da Comissão Mineira do Folclore, foi um pioneiro em muitas frentes. Escreveu, nos anos 30, já que sofria de deficiência visual, uma Educação de Cegos no Brasil.

Em férias, em 1929, o filólogo viajou para São João da Chapada, onde lhe chamaram a atenção "umas cantigas em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração", conforme descreveu no livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, obra publicada em 1943 pela editora José Olympio.

Mata Machado sustenta a importância dos vissungos, sua influência nos começos daquele arraial e mais "os vestígios da língua das cantigas na linguagem corrente, na onomástica e na toponímia" - os vestígios de um um dialeto banto num tempo em que se pensava que a língua dos negros trazidos como escravos para o Brasil resumia-se ao nagô.

Das 65 partituras registradas no livro "O Negro e o Garimpo em Minas Gerais", foram selecionadas 14, que distribuídas entre Clementina de Jesus, Doca da Portela e Geraldo Filme, transformaram-se em documentos musicais disputados pelos colecionadores.

Em 1982, a Gravadora Eldorado ousou seu lance mais arriscado, animada pelo sucesso (de crítica) das séries de Marcus Pereira. Editou o disco O Canto dos Escravos, reunindo canções recolhidas e anotadas pelo historiador mineiro Aires da Mata Machado Filho.

Os textos dos Vissungos, extraídos do livro de Aires da Mata Machado Filho, O negro e o garimpo em Minas Gerais (2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1964):


A jangada secando água:
Solo:
Aua cu aua cangirê
Aua cu aua cangira auê
Aua cu aua cangirê, aua
Coro:
Ê aua
Tanto aua para que, aua
Tanto aua pra bebê, aua


Canto da Tarde:

Solo:
Oenda, auê, a a!
Ucumbi oenda, auê, a...
Oenda auê, a a!
Ucumbi oenda, auê, no calunga
Coro 1º:
Ucumbi oenda, ondoró onjó
Ucumbi oenda, ondoró onjó (bis)
Coro 2º:
Iô vou oendá, pu curima auê


Bem que Diamantina poderia ter um espaço em homenagem a
Aires da Mata Machado, além de um nome de escola...
Dá pra pensar, num dá?

Bernardo Magalhães


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